segunda-feira, novembro 14, 2005

Prólogo

Era uma vez três princesas. O pai não era rei nenhum, a mãe nunca se vira rainha e não havia nenhuma coroa na família, mas que elas três eram todas princesinhas ninguém tinha dúvida nenhuma.
A mais nova era uma criaturinha tão linda que além de princesa, era fada. Sem varinha e sem condão.
A segunda menina nascera numa noite de lua cheia e era sempre quando a lua inchava assim que ela desaparecia por entre os uivos dos lobisomens.
A mais velha passava mais horas que as que o dia tem a bordar rosas vermelhas e amarelas numa cadeira junto à porta de casa. À espera que o mundo acabasse.
Nas raras vezes que ofereciam a sua aparição aos súbditos da aldeia, surgiam do nada numa fila das índias, cobertas por pequenos mantos azuis, azul que não era nem do mar, nem do céu, nem da tempestade, nem de flores, nem de tintas. Era azul do inferno. Obsceno e herege. Só a realeza se podia atrever em tal desafio ao divino. Chamas cobriam os cabelos claros em ondas do rio. Ainda mais bonitas ficavam, de um despeito que parava a vida na aldeia. A mais pequena encandeava. Os homens escondiam-se de vergonha quando elas voltavam a esfumar-se no caminho de pó. Os meninos faziam chichi nas calças. As velhas faziam pactos com a Morte e as meninas choravam de dores nos olhos e nas dobras dos braços. Era o mendigo cego das doze estradas que dava o sinal que fazia tudo regressar ao normal, com o seu gemido cíclico.
A mãe morrera quando elas eram ainda pequenas, depois de um acesso de vómitos que durou três dias e três noites. Quando a alma lhe saiu no meio de gosma verde e preta, nunca mais fechou os olhos. Uma semana antes, a filha não fora ter com os lobos e dormira que nem um anjo.
A mais nova tinha olhos azuis, a do meio pretos e a mais velha cor de mel. Como a mãe, tinham a alma a rodear a íris. Como o pai, que plantava tomates e centeio, tinham escrita a vida na palma das mãos. Só quando a mulher morreu é que ele olhou em redor da casa, reparou nas filhas e começou a amá-las, porque o coração já tinha espaço para amar vivos. Antes tinha os olhos vermelhos e as mãos amarelas dos tomates e do centeio, depois passou a tê-los de todas as cores, até que se foram cansando e cegando, de tanta luz que a pequenita emanava. A única de quem a mãe das três princesas gostava, porque achava que não se esforçara antes o suficiente para lhe nascerem filhas fadas.
Só Graça, a mais velha, dormia num quarto sozinha. Tinha um sono leve, não suportava os uivos da irmã e, além disso, todas as suas toalhas, almofadas, tapetes, aventais, lençóis, cortinados e tudo o mais que pudesse ser bordado ocupava muito espaço. Tinha três armários, dois baús empilhados e o resto cobria as paredes, o chão, metade do tecto e o buraco debaixo da cama. Contou até às cinco mil, oitocentas e quarenta flores vermelhas e às cinco mil oitocentas e vinte e sete flores amarelas, mas a partir daí achou demasiado aborrecido e complicado. Além disso, só sabia contar até seis mil. Nunca vestira nem usara nada do que bordava e só entrava no quarto de luzes apagadas. O pai dizia que aquilo ia servir ao diabo para enxugar as lágrimas quando o mundo acabasse e já não houvesse mais almas para roubar. Quando não bordava, entrançava no cabelo da mais nova as linhas vermelhas e amarelas que sobravam ou ficava deliciada a ver a pequenina brincar. Era a única coisa que a fazia sorrir. Quando nasceu, a parteira pensou que estava morta e a mãe não conseguiu respirar durante uma hora.
Beatriz, a princesa do meio, ficava-se pela metade em tudo. Nunca acabava as frases. Nunca acabava o que tinha no prato nem no copo. Nunca acabava os desenhos que fazia no chão, nunca acabava as brincadeiras, nem nunca acabava o sono e os sonhos. A meio das palavras quedava-se a fitar as pessoas como se tentasse falar com os olhos. No fim das refeições comia até o prato de louça com os olhos e concentrava-se no copo meio vazio, como quem espera que este se levante e se derrame nos lábios. Olhava para os desenhos como se lá tivesse fundado um mundo, desmoronava os frágeis enredos da irmã ao recusar dar mais um passo sequer e acordava à três da manhã só com um abrir mudo de olhos, mantendo a sua defunta imagem, para fixar o tecto como quem sonha de propósito. Às vezes voltava para casa de manhã com dentadas de lobo na camisa de dormir. Graça já se aborrecera de as tentar remendar. Era um emaranhado de nós vermelhos e amarelos, rasgões e marcas de dentes. Nunca teve outra, nunca lhe ofereceram nenhuma nem nunca quis ela uma nova.
Raramente falava quando não era preciso.
Linda tinha o mesmo nome da avó espanhola. O cabelo era de amêndoa clara igualzinho ao das irmãs, em ondas de arroio, mas nas manhãs de geada nasciam-lhe reflexos de prata. E tinha as unhas verde-cor-de-feto. Toda ela parecia o curso de um riacho de montanha, em que os cabelos de água se espraiavam ao invadir as curvas dos seixos brancos, da pele fina, tecida que nem a saliva das borboletas. Tinha um nariz perfeitinho como as pétalas das flores, uma boca feita de pêssegos, uns olhos grandes que o céu reflectia. Maçãs e linhas tão perfeitas que pareciam imateriais e feitas de nuvens, de tal maneira que a mãe chorava sempre que olhava tempo demais para ela. Mas Linda parecia alheada de tudo isto, achava que o mundo era só as suas irmãs e nunca lhe passou pela cabeça que pudesse querer mais. Era uma gulosa indomável, acabava sempre o que Beatriz deixava no prato e não se parecia importar minimamente com os puxões que Graça lhe fazia quando a entrançava. Era uma distraída e uma trapalhona.
A casa era pequenita, com um sótão enorme onde só havia uma mesa, uma cadeira, uma gaveta e uma lamparina. Ficava junto à orla de um bosque preto e o céu ali era numa parte de três cor-de-rosa.

São sete da tarde. Graça está sentada na cadeira verde de palha a bordar uma rosa amarela. Os olhos não estão na rosa. Estão na estrada. Beatriz está trancada no quarto e Linda está entretidíssima a sujar o vestido enquanto tenta trepar à macieira em flor. O pai carrega o cesto de tomates vermelhos para dentro. Ouve-se um barulho como se estivessem a chover troncos de madeira. A cadeira range.



entretenham-se enquanto eu tento descobrir para que raio serve a faculdade
n cheguei a rever o texto antes de o postar, e já o fiz há tanto tempo que não sei se era suposto mudar alguma coisa....in quase bruto

3 Indiscrições:

Blogger nobody cuspiu...

Fantástico!!!
E depois? (Que pena acabar aqui!)

dezembro 05, 2005 7:39 da tarde  
Anonymous Anónimo cuspiu...

o depois existe...mas já devo ter eu barbas qdo sair pra fora de folhas de papel..

dezembro 14, 2005 2:29 da manhã  
Anonymous Anónimo cuspiu...

as tuas palvras carregam açucar de tão doces que são.

amei!!

dezembro 31, 2005 12:42 da manhã  

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