terça-feira, abril 05, 2005

Parto

Saltando as pedras duras da calçada
minha mãe conta as moeditas que tem
no bolsinho da saia rodada,
para comprar rebuçados.

Cabelo entrançado em seda,
daquela que cospem os anjos,
fogem-te ondas dessas águas revoltas
por cada saltito que empinas.

A cada salto que empinas
os sapatitos se te ritmam
nas pedras duras da calçada.
E o som das teclas berra aos homens,
como do pó os montes vão e voltam.
E em oração a pele se roça
às pregas redondas do vestido vermelho,
vestidinho encarnado de perdição.

A minha mãe pequenina
põe o mundo a girar,
enquanto salta nas pedras da estrada.
E pinota a criança despenteada
de tanto e tanto rodar e saltar!...

Ouvindo o mundo como ao silêncio,
minha mãe salta no caminho.
Enquanto o mundo roda.
Enquanto as carroças, já com rodas,
não te velando para voltear,
por ti acima saltam a rodar.

Os cabelinhos se lhe espalham,
o vestidinho se lhe abre
num delírio de vermelho vivo
contra a morte da mãe pequenininha.

Numa idade de não morrer,
minha mãe se desfez no pó dos montes.

E eu?
Que tenho de existir se não nasci?
Se minha mãe não me fez, não me teve?
Se sou só por vontade própria,
contra a vontade do mundo?
Se não comungo com a natureza ,
se não conluio com os homens?
Se me confino ao fundo da identidade?
Se até Deus se pariu!


Numa noite entre os lençóis, suspirando,
minha mãe que poderia ter tido
me ensinava que do pó vão as montanhas.

1 Indiscrições:

Anonymous Anónimo cuspiu...

não pares Micas!!obrigado pelo voo..
=)

maio 24, 2005 9:31 da tarde  

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